Credit: Adobe StockO mito dos trilhões: O que a narrativa sobre o mercado saudita não mostra
Gustavo Favaron, Global CEO do GRI Institute, explora os obstáculos enfrentados pela Arábia Saudita na implementação da Visão 2030
18 de dezembro de 2025Mercado Imobiliário
Escrito por:Gustavo Favaron
Principais Insights
- Embora a Visão 2030 da Arábia Saudita seja extremamente ambiciosa, sua execução enfrenta desafios significativos, o que exige uma abordagem mais cautelosa por parte dos investidores.
- Os Emirados Árabes Unidos se destacaram como um destino estratégico para o capital global, alterando as dinâmicas de investimento na região do Conselho de Cooperação do Golfo.
- A crescente preocupação com riscos regulatórios e o avanço lento dos projetos estão tornando os investidores mais cautelosos em relação ao mercado imobiliário da Arábia Saudita.
De tempos em tempos, circula na mídia especializada uma narrativa pronta sobre o mercado imobiliário saudita: US$ 1,25 trilhão em investimentos, cidades que brotam do deserto, crescimento linear até 2033.
É uma história poderosa para manchetes, mas que se desfaz rapidamente no contato com a realidade de quem, de fato, aloca capital, negocia áreas, estrutura joint ventures e, acima de tudo, compara retornos e riscos entre as praças financeiras do Golfo.
O objetivo aqui não é contestar a transformação saudita. Pelo contrário, é tratá-la com a seriedade que merece. E isso exige separar ambição, execução e risco, algo que raramente aparece nas leituras feitas à distância.
Em 2025, o PIF realizou ajustes contábeis relevantes e reavaliou vários giga-projects diante do desafio de execução, priorizando trechos menores e mais financeiramente sustentáveis. Não se trata de fracasso. É reprecificação interna de risco, algo natural em programas de escala continental, mas que não podemos deixar de considerar.
Isso não diminui a ambição saudita, mas reforça que não existe boom infinito sem trade-offs fiscais. Essas nuances não aparecem em análises produzidas à distância. Mas para quem, como o GRI Institute, acompanha a região de perto, dialoga diretamente com fundos soberanos, family offices, developers e bancos locais, a leitura é outra.
Estar no Golfo, observar a execução no terreno e ouvir quem realmente toma decisões permite separar narrativa de realidade, e essa diferença é decisiva para entender o que está acontecendo de fato.
O capital global, hoje, prefere Abu Dhabi e Dubai para execução imediata. Segundo o Dubai Land Department, as transações imobiliárias atingiram AED 761 bilhões em 2024, recorde histórico.Em 2025, o primeiro semestre manteve ritmo forte, com AED 431 bilhões em transações. Segundo a UNCTAD, os Emirados receberam US$ 30,7 bilhões em FDI em 2023, liderando a região.
Dados divulgados pelo governo dos Emirados e por rankings internacionais indicam que o país superou a marca de US$ 45 bilhões em FDI em 2024, consolidando-se como um dos principais destinos globais de capital produtivo e ampliando sua liderança no Oriente Médio. Comparativamente, a Arábia Saudita registrou US$ 31,7 bilhões em FDI em 2024, com queda líquida em alguns fluxos.
Nos últimos cinco a seis meses, porém, algo ainda mais relevante ocorreu, e que quase ninguém está capturando nas análises tradicionais. Durante décadas, os Emirados Árabes foram vistos como um polo de fundraising global: investidores viajavam a Abu Dhabi e Dubai para levantar capital que seria aplicado no resto do mundo.
Agora, o movimento se inverteu. Vemos cada vez mais gestores americanos, europeus e asiáticos abrindo entidades nos Emirados não apenas para captar, mas para investir localmente em Abu Dhabi e Dubai. É um influxo real de capital, algo inédito na história recente da região, e que marca uma mudança estrutural na geografia dos fluxos de capitais globais de real assets.
Esse shift ganhou ainda mais força com o anúncio recente do novo fundo do Mubadala para captar investimento estrangeiro e assim fomentar investimentos dentro dos Emirados, um marco simbólico e estratégico que reforça que o país deixou de ser apenas fonte de capital para se tornar destino desejado pelo próprio capital global.
Ao mesmo tempo, o que se ouve nos bastidores, tanto nos Emirados quanto em Nova York e Londres, é que captar recursos na Arábia Saudita se tornou muito mais difícil.
O número de gestores que chegam a Riade buscando levantar capital e saem sem um cheque aumentou visivelmente. Muitos descrevem frustração real com o processo.
E há uma razão para isso: a demanda total de capital para financiar a Visão 2030 é hoje muito maior do que o próprio PIF gostaria de alocar diretamente. Por isso, o fundo soberano tem intensificado sua sinalização, ainda que não seja uma exigência formal, para que os GPs invistam localmente no Reino, participando de projetos sauditas como demonstração de alinhamento estratégico.
Do lado internacional, entretanto, cresce uma percepção: Vision 2030 está longe de ser entregue no formato originalmente concebido. Entre investidores globais, já se tornou consenso que o plano exigirá ajustes, escalonamentos ou reconfigurações. Essa visão não vem de relatórios, vem das conversas a portas fechadas com quem investe há décadas na região.
Riade tenta copiar Dubai e não esconde isso de ninguém. Mas não é algo que consegue ser feito de modo tão rápido quanto a ambição de Mohamed Bin Salman.
E aqui entra um ponto raramente dito em público, mas amplamente reconhecido em conversas privadas: mesmo investidores profundamente otimistas em relação ao potencial saudita concordam que o país precisará de décadas, não anos, para se aproximar do patamar de maturidade institucional, eficiência operacional e ambiente de negócios visto em Dubai e Abu Dhabi.
As diferenças culturais, burocráticas e estatais ainda representam um desafio significativo quando comparadas a vizinhos, especialmente os Emirados Árabes, mas até mesmo com os menores Omã e Bahrein. De minha parte, considero isso normal, já que a mudança que está em curso é estrutural.
A título de exemplo concreto: recentemente, um executivo do GRI Institute com residência nos Emirados, passaporte limpo e amplo histórico internacional de viagens, sem nunca ter tido qualquer problema, solicitou o visto para a Arábia Saudita e até agora não recebeu qualquer atualização sobre a aprovação.
É um episódio aparentemente simples, mas que ilustra um problema profundo: como fazer negócios em escala global quando o próprio acesso ao país é imprevisível? Para muitos investidores, isso simboliza a distância entre a aspiração saudita e a realidade operacional do país hoje.
Enquanto análises distantes continuam descrevendo o país com a lente de 2021, o mercado real já se moveu para outra fase: menos hype, mais capital disciplinado; menos “boom perfeito”, mais cálculo de risco-realocação; menos narrativa, mais on-the-ground.
Reitero minha crença de que o país tem tudo para atingir seus sonhos e serei o primeiro a comemorar tal transformação. Apenas entendo que o processo é mais custoso e lento do que se previa inicialmente.
No Golfo de 2026, o futuro não será moldado por quem decifra comunicados de imprensa, mas por quem decifra fluxos de capital, dinâmicas soberanas e a nova geografia da competição regional.
O futuro pertence a quem tem assento, ou ouvidos muito próximos, à mesa onde as decisões são, de fato, tomadas. E nessa mesa, a ilusão dos trilhões não tem vez.
É uma história poderosa para manchetes, mas que se desfaz rapidamente no contato com a realidade de quem, de fato, aloca capital, negocia áreas, estrutura joint ventures e, acima de tudo, compara retornos e riscos entre as praças financeiras do Golfo.
O objetivo aqui não é contestar a transformação saudita. Pelo contrário, é tratá-la com a seriedade que merece. E isso exige separar ambição, execução e risco, algo que raramente aparece nas leituras feitas à distância.
O que é verdadeiro no “boom saudita”, e merece reconhecimento
A escala do programa Vision 2030 é real
A Arábia Saudita colocou em marcha mais de US$ 1,3 trilhão em projetos urbanos e de infraestrutura ligados à Vision 2030 (número reportado pela Bloomberg em 2024 ao analisar o portfólio consolidado de giga-projects do país).A política habitacional avançou de maneira tangível
Segundo o Annual Report 2024 do Housing Program, publicado no portal oficial da Vision 2030, a taxa de homeownership aumentou para aproximadamente 65% em 2024, aproximando-se da meta de 70% até 2030. Ou seja: existe, sim, uma agenda pública séria e mensurável.
A Arábia Saudita colocou em andamento mais de 1,3 trilhões de dólares em projetos urbanos e de infraestrutura vinculados à Visão 2030. (Wiki Commons)
Onde a narrativa otimista para, e a realidade começa
NEOM, The Line e o freio da execução
Em 2024, a Bloomberg confirmou que o projeto The Line, o mais emblemático subprojeto de NEOM, antes anunciado como uma cidade linear de 170 km para 1,5 milhão de habitantes até 2030, passou por uma revisão profunda, com previsão de entrega inicial reduzida a poucos quilômetros.Em 2025, o PIF realizou ajustes contábeis relevantes e reavaliou vários giga-projects diante do desafio de execução, priorizando trechos menores e mais financeiramente sustentáveis. Não se trata de fracasso. É reprecificação interna de risco, algo natural em programas de escala continental, mas que não podemos deixar de considerar.
O ambiente fiscal ficou mais apertado
O IMF Article IV 2025 destaca que o país projeta déficits fiscais crescentes até 2026 e aumentou a emissão de dívida para financiar parte dos investimentos Vision 2030. O mesmo relatório mostra que o governo tornou-se o maior emissor de dívida em dólar entre emergentes em 2024.Isso não diminui a ambição saudita, mas reforça que não existe boom infinito sem trade-offs fiscais. Essas nuances não aparecem em análises produzidas à distância. Mas para quem, como o GRI Institute, acompanha a região de perto, dialoga diretamente com fundos soberanos, family offices, developers e bancos locais, a leitura é outra.
Estar no Golfo, observar a execução no terreno e ouvir quem realmente toma decisões permite separar narrativa de realidade, e essa diferença é decisiva para entender o que está acontecendo de fato.
Riade: onde o boom imobiliário virou problema urbano
Preços de venda e aluguel dispararam
Desde 2020, os preços das casas em Riade subiram +81%, enquanto apartamentos avançaram +56%. Relatórios da Knight Frank mostram aumentos anuais de dois dígitos no residencial e submercados com valorização superior a 40% em 2024.O congelamento de aluguéis expôs o risco regulatório
Em setembro de 2025, o governo anunciou o congelamento de aluguéis por 5 anos em Riade. Para qualquer investidor, isso muda a tese de renda imediatamente: quando o Estado precisa congelar aluguéis, o risco regulatório deixa de ser teórico.A parte que quase ninguém comenta: a competição regional mudou
Há uma dimensão crítica, sistematicamente ignorada nas análises superficiais: a competição regional e a radical reconfiguração dos fluxos de capital. O verdadeiro motor do Golfo hoje não é um país isolado, mas a dinâmica entre os Emirados Árabes e a Arábia Saudita.O capital global, hoje, prefere Abu Dhabi e Dubai para execução imediata. Segundo o Dubai Land Department, as transações imobiliárias atingiram AED 761 bilhões em 2024, recorde histórico.Em 2025, o primeiro semestre manteve ritmo forte, com AED 431 bilhões em transações. Segundo a UNCTAD, os Emirados receberam US$ 30,7 bilhões em FDI em 2023, liderando a região.
Dados divulgados pelo governo dos Emirados e por rankings internacionais indicam que o país superou a marca de US$ 45 bilhões em FDI em 2024, consolidando-se como um dos principais destinos globais de capital produtivo e ampliando sua liderança no Oriente Médio. Comparativamente, a Arábia Saudita registrou US$ 31,7 bilhões em FDI em 2024, com queda líquida em alguns fluxos.
Nos últimos cinco a seis meses, porém, algo ainda mais relevante ocorreu, e que quase ninguém está capturando nas análises tradicionais. Durante décadas, os Emirados Árabes foram vistos como um polo de fundraising global: investidores viajavam a Abu Dhabi e Dubai para levantar capital que seria aplicado no resto do mundo.
Agora, o movimento se inverteu. Vemos cada vez mais gestores americanos, europeus e asiáticos abrindo entidades nos Emirados não apenas para captar, mas para investir localmente em Abu Dhabi e Dubai. É um influxo real de capital, algo inédito na história recente da região, e que marca uma mudança estrutural na geografia dos fluxos de capitais globais de real assets.
Esse shift ganhou ainda mais força com o anúncio recente do novo fundo do Mubadala para captar investimento estrangeiro e assim fomentar investimentos dentro dos Emirados, um marco simbólico e estratégico que reforça que o país deixou de ser apenas fonte de capital para se tornar destino desejado pelo próprio capital global.
Ao mesmo tempo, o que se ouve nos bastidores, tanto nos Emirados quanto em Nova York e Londres, é que captar recursos na Arábia Saudita se tornou muito mais difícil.
O número de gestores que chegam a Riade buscando levantar capital e saem sem um cheque aumentou visivelmente. Muitos descrevem frustração real com o processo.
E há uma razão para isso: a demanda total de capital para financiar a Visão 2030 é hoje muito maior do que o próprio PIF gostaria de alocar diretamente. Por isso, o fundo soberano tem intensificado sua sinalização, ainda que não seja uma exigência formal, para que os GPs invistam localmente no Reino, participando de projetos sauditas como demonstração de alinhamento estratégico.
Do lado internacional, entretanto, cresce uma percepção: Vision 2030 está longe de ser entregue no formato originalmente concebido. Entre investidores globais, já se tornou consenso que o plano exigirá ajustes, escalonamentos ou reconfigurações. Essa visão não vem de relatórios, vem das conversas a portas fechadas com quem investe há décadas na região.
Cada vez mais, gestores americanos e europeus estão estabelecendo entidades nos Emirados Árabes Unidos, não apenas para captar fundos, mas também para investir localmente em Abu Dhabi e Dubai. (Adobe Stock)
A leitura madura: a Arábia Saudita não é “sim ou não”, é “como, onde e com quem”
O investidor sério precisa de três filtros:- Aderência à Vision 2030 e ao escrutínio soberano: Projetos bem alinhados têm mais proteção política, mas não são imunes a revisões de escopo.
- Governança e parceria: O país valoriza reciprocidade: capital externo + expertise externa + compromisso local.
- Comparação com os Emirados: Dubai/Abu Dhabi oferecem liquidez, transparência regulatória, maturidade e execução mais previsível. Riade oferece escala, mas também risco regulatório, maior dependência estatal e volatilidade de política urbana.
A conclusão que quase ninguém tem coragem de escrever
A Arábia Saudita é, sim, uma das transformações urbanas mais ambiciosas do século XXI. Mas certamente a realidade é muito mais complexa do que o plano Vision 2030. Há barreiras culturais ainda muito grandes, incomparáveis quando analisadas junto ao seu vizinho Emirados Árabes.Riade tenta copiar Dubai e não esconde isso de ninguém. Mas não é algo que consegue ser feito de modo tão rápido quanto a ambição de Mohamed Bin Salman.
E aqui entra um ponto raramente dito em público, mas amplamente reconhecido em conversas privadas: mesmo investidores profundamente otimistas em relação ao potencial saudita concordam que o país precisará de décadas, não anos, para se aproximar do patamar de maturidade institucional, eficiência operacional e ambiente de negócios visto em Dubai e Abu Dhabi.
As diferenças culturais, burocráticas e estatais ainda representam um desafio significativo quando comparadas a vizinhos, especialmente os Emirados Árabes, mas até mesmo com os menores Omã e Bahrein. De minha parte, considero isso normal, já que a mudança que está em curso é estrutural.
A título de exemplo concreto: recentemente, um executivo do GRI Institute com residência nos Emirados, passaporte limpo e amplo histórico internacional de viagens, sem nunca ter tido qualquer problema, solicitou o visto para a Arábia Saudita e até agora não recebeu qualquer atualização sobre a aprovação.
É um episódio aparentemente simples, mas que ilustra um problema profundo: como fazer negócios em escala global quando o próprio acesso ao país é imprevisível? Para muitos investidores, isso simboliza a distância entre a aspiração saudita e a realidade operacional do país hoje.
Enquanto análises distantes continuam descrevendo o país com a lente de 2021, o mercado real já se moveu para outra fase: menos hype, mais capital disciplinado; menos “boom perfeito”, mais cálculo de risco-realocação; menos narrativa, mais on-the-ground.
Reitero minha crença de que o país tem tudo para atingir seus sonhos e serei o primeiro a comemorar tal transformação. Apenas entendo que o processo é mais custoso e lento do que se previa inicialmente.
No Golfo de 2026, o futuro não será moldado por quem decifra comunicados de imprensa, mas por quem decifra fluxos de capital, dinâmicas soberanas e a nova geografia da competição regional.
O futuro pertence a quem tem assento, ou ouvidos muito próximos, à mesa onde as decisões são, de fato, tomadas. E nessa mesa, a ilusão dos trilhões não tem vez.